domingo, 2 de dezembro de 2012

A Mumificação


   A preocupação com a vida após a morte constitui característica essencial da cultura egípcia antiga, e refletiu-se na adoção de práticas funerárias bastante incomuns, como a mumificação - tida como a garantia da existência eterna. Conforme demonstram claramente muitos registros, os antigos egípcios sabiam que o corpo físico jamais iria renascer. Mas as partes etéreas que formavam um ser humano, como o Ká - comumente traduzido por “espírito” - precisavam se identificar por completo com o corpo ao qual pertenciam. Logo, este deveria ser preservado. A destruição do corpo acarretava a destruição das partes espirituais e, consequentemente, a perda da vida eterna. O costume foi relacionado ao culto do deus Osíris, a divindade mais popular nos tempos faraônicos, senhor do além-túmulo.

As múmias mais antigas datam do Período Pré-Dinastico, anterior a 3000 a.C.: tratam-se na verdade de corpos preservados naturalmente na areia quente e seca do deserto onde eram sepultados. A idéia de se conservar os corpos dos mortos passou a fazer parte das crenças religiosas, e então, já nas primeiras dinastias (2920-2649 a.C.) buscava-se um método artificial de preservação, porém ainda ineficaz. No Antigo Reino (2649-2152 a.C.) e no Médio Reino (2040-1783 a.C.) aprimoraram-se as técnicas. O processo mais avançado, resultando em melhor preservação, foi atingido no final do Novo Reino (1550-1070 a.C.) e durante a 21ª dinastia (1070-945 a.C.; início do chamado Terceiro Período Intermediário). A partir daí as técnicas se tornaram cada vez mais obsoletas, e no século II d.C. - já no período romano - a mumificação, embora ainda praticada, estava longe de apresentar os resultados de outrora. Nesse tempo o costume já começava a ser abandonado dado ao alastramento do Cristianismo - religião com propostas totalmente diferentes em relação à vida após a morte. Inicialmente a preservação era realizada apenas nos corpos de membros da realeza e classes mais elevadas, mas com o transcorrer da história egípcia a prática tornou-se muito mais popularizada. De qualquer forma, o processo exigia certos recursos que o limitavam aos mais abastados.

Embora a prática da mumificação fosse amplamente difundida, os antigos egípcios não deixaram relatos concretos sobre ela. Não foi encontrado até hoje nenhum papiro que trouxesse orientações sobre as várias etapas do processo - para muitos egiptólogos é improvável que algum seja encontrado, ou que tenha sequer existido. Os registros iconográficos também pouco revelam: cenas em algumas tumbas tratam somente dos enfaixamentos finais do corpo, tema de que também trata um texto conhecido por “Ritual do Embalsamamento”. Isso leva a crer que os egípcios consideravam-na muito sagrada para ser documentada - seja em escritos ou em representações. O conhecimento do processo era passado em vias de tradição oral. Existe, porém, o relato de Heródoto, viajante grego que esteve no Egito no ano 450 a.C. e descreveu como era feita a mumificação no Livro II de sua obra História. Na verdade Heródoto relatou o que sacerdotes lhe informaram, não tendo efetivamente testemunhado o que escreveu. Embora a prática já estivesse em decadência naquela época e alguns detalhes apresentarem-se errôneos ou incompletos, sua descrição tem sido uma das maiores fontes para o estudo da mumificação egípcia antiga.

Podemos considerar os embalsamadores, ou mumificadores, como sacerdotes-médicos. Além de detentores de amplos conhecimentos de anatomia, executavam também as cerimônias ritualísticas que deveriam acompanhar o tratamento do corpo, garantindo-lhe uma proteção espiritual. Essas cerimônias aconteciam em cada estágio do processo de mumificação. O principal sacerdote que dirigia os trabalhos de mumificação era chamado de hery-seshta, “chefe dos segredos”, e representava Anúbis, o deus-chacal da mumificação. Poderia usar uma máscara na forma da cabeça do referido animal, para assim salientar sua identificação com a divindade. Não devemos esquecer que, segundo as lendas, Anúbis mumificara o corpo de Osíris, fazendo-o ressurgir da morte. Sendo assim, a pessoa que ficasse sobre “os cuidados das mãos de Anúbis” receberia os mesmos cuidados que teriam sido dispensados a Osíris - por extensão, garantiria sua ressurreição.

O primeiro estágio da mumificação era realizado no ibu-en-wab, “tenda da purificação”. Depois o corpo era levado ao wabet, “casa da purificação”, também chamado de per-nefer, “casa da regeneração” - um recinto cercado, dentro do qual erguia-se uma tenda ou barraca, onde o corpo era deitado num suporte de madeira. Tanto o ibu-en-wab quanto o wabet eram estruturas móveis, facilmente montadas e desmontadas, feitas de madeira. Em geral eram fixadas no lado oeste do Nilo, onde se situavam a maioria das necrópoles nos tempos faraônicos. Parte do trabalho era feito ao ar livre, dado aos odores provenientes dos corpos em tratamento.

Processo demorado, durando cerca de 2 meses e meio, a mumificação envolvia dois procedimentos básicos: 1°) evisceração, ou retirada de órgãos - cérebro pelas narinas, vísceras por um corte no abdômen; estas últimas eram em seguida depositadas em vasos, chamados pelos egiptólogos de canópicos, que ficavam sob a proteção de divindades especiais. 2°) desidratação, ou retirada da umidade do corpo - nesse sentido, cobriam o cadáver com natrão, um composto de sódio, por pelo menos 40 dias, ao final dos quais só restavam pele, ossos e carnes endurecidas. Seguia-se, durando cerca de 2 semanas, o enfaixamento com bandagens de linho, entre as quais depositavam-se jóias e amuletos de proteção.

Interessante lembrar que a palavra múmia não é egípcia. Vem do persa ou árabe mummiah, que significa betume - substância a que se atribuíam poderes curativos. A aparência escura de certos corpos embalsamados do tempo dos faraós sugestionou aos árabes a errônea concepção de que os antigos egípcios usavam betume na preservação dos cadáveres. Sendo uma substância bastante procurada devido ao seu emprego medicinal, as múmias egípcias tornaram-se na Idade Média uma fonte segura de obtenção daquele produto, movimentando um precioso comércio, envolvendo Alexandria e o Cairo aos mercadores da Europa Ocidental que vinham em busca das famosas especiarias. Isso provocou incansáveis saques aos sepulcros dos tempos faraônicos. Corpos eram retirados das antigas tumbas e divididos em pequenos pedaços, embalados para a venda como medicamento. Seja como chá ou composta em pomada, acreditava-se na época que múmia curava uma infinidade de doenças! Em egípcio antigo, a palavra que designava um corpo preservado e envolvido em bandagens era wi. A mumificação era chamada de wet - enfaixar - ou então senefer - revigorar - termo esse que deixa claro um dos propósitos da prática.

Apesar dessa preocupação evidente com a preservação dos corpos, os antigos egípcios, ao contrário do que comumente se pensa, jamais foram obcecados pela idéia da morte e do além-túmulo. Amavam a vida terrena acima de tudo, e achavam que nada valia em troca dela. A morte era vista como uma passagem para a outra vida, onde se levaria uma existência semelhante à da terra. Era para esta nova existência que deveria ser feita uma cuidadosa preparação - incluindo a mumificação - o que permitiria à alma um desfrute pleno e eterno da felicidade que lhe aguardava no além.

Nenhum comentário:

Postar um comentário