A Mumificação
A preocupação com a vida após a morte constitui característica essencial
da cultura egípcia antiga, e refletiu-se na adoção de práticas
funerárias bastante incomuns, como a mumificação - tida como a garantia
da existência eterna. Conforme demonstram claramente muitos registros,
os antigos egípcios sabiam que o corpo físico jamais iria renascer. Mas
as partes etéreas que formavam um ser humano, como o Ká - comumente
traduzido por “espírito” - precisavam se identificar por completo com o
corpo ao qual pertenciam. Logo, este deveria ser preservado. A
destruição do corpo acarretava a destruição das partes espirituais e,
consequentemente, a perda da vida eterna. O costume foi relacionado ao
culto do deus Osíris, a divindade mais popular nos tempos faraônicos,
senhor do além-túmulo.
As múmias mais antigas datam do Período Pré-Dinastico, anterior a 3000
a.C.: tratam-se na verdade de corpos preservados naturalmente na areia
quente e seca do deserto onde eram sepultados. A idéia de se conservar
os corpos dos mortos passou a fazer parte das crenças religiosas, e
então, já nas primeiras dinastias (2920-2649 a.C.) buscava-se um método
artificial de preservação, porém ainda ineficaz. No Antigo Reino
(2649-2152 a.C.) e no Médio Reino (2040-1783 a.C.) aprimoraram-se as
técnicas. O processo mais avançado, resultando em melhor preservação,
foi atingido no final do Novo Reino (1550-1070 a.C.) e durante a 21ª
dinastia (1070-945 a.C.; início do chamado Terceiro Período
Intermediário). A partir daí as técnicas se tornaram cada vez mais
obsoletas, e no século II d.C. - já no período romano - a mumificação,
embora ainda praticada, estava longe de apresentar os resultados de
outrora. Nesse tempo o costume já começava a ser abandonado dado ao
alastramento do Cristianismo - religião com propostas totalmente
diferentes em relação à vida após a morte. Inicialmente a preservação
era realizada apenas nos corpos de membros da realeza e classes mais
elevadas, mas com o transcorrer da história egípcia a prática tornou-se
muito mais popularizada. De qualquer forma, o processo exigia certos
recursos que o limitavam aos mais abastados.
Embora a prática da mumificação fosse amplamente difundida, os antigos
egípcios não deixaram relatos concretos sobre ela. Não foi encontrado
até hoje nenhum papiro que trouxesse orientações sobre as várias etapas
do processo - para muitos egiptólogos é improvável que algum seja
encontrado, ou que tenha sequer existido. Os registros iconográficos
também pouco revelam: cenas em algumas tumbas tratam somente dos
enfaixamentos finais do corpo, tema de que também trata um texto
conhecido por “Ritual do Embalsamamento”. Isso leva a crer que os
egípcios consideravam-na muito sagrada para ser documentada - seja em
escritos ou em representações. O conhecimento do processo era passado em
vias de tradição oral. Existe, porém, o relato de Heródoto, viajante
grego que esteve no Egito no ano 450 a.C. e descreveu como era feita a
mumificação no Livro II de sua obra História. Na verdade Heródoto
relatou o que sacerdotes lhe informaram, não tendo efetivamente
testemunhado o que escreveu. Embora a prática já estivesse em decadência
naquela época e alguns detalhes apresentarem-se errôneos ou
incompletos, sua descrição tem sido uma das maiores fontes para o estudo
da mumificação egípcia antiga.
Podemos considerar os embalsamadores, ou mumificadores, como
sacerdotes-médicos. Além de detentores de amplos conhecimentos de
anatomia, executavam também as cerimônias ritualísticas que deveriam
acompanhar o tratamento do corpo, garantindo-lhe uma proteção
espiritual. Essas cerimônias aconteciam em cada estágio do processo de
mumificação. O principal sacerdote que dirigia os trabalhos de
mumificação era chamado de hery-seshta, “chefe dos segredos”, e
representava Anúbis, o deus-chacal da mumificação. Poderia usar uma
máscara na forma da cabeça do referido animal, para assim salientar sua
identificação com a divindade. Não devemos esquecer que, segundo as
lendas, Anúbis mumificara o corpo de Osíris, fazendo-o ressurgir da
morte. Sendo assim, a pessoa que ficasse sobre “os cuidados das mãos de
Anúbis” receberia os mesmos cuidados que teriam sido dispensados a
Osíris - por extensão, garantiria sua ressurreição.
O primeiro estágio da mumificação era realizado no ibu-en-wab, “tenda da
purificação”. Depois o corpo era levado ao wabet, “casa da
purificação”, também chamado de per-nefer, “casa da regeneração” - um
recinto cercado, dentro do qual erguia-se uma tenda ou barraca, onde o
corpo era deitado num suporte de madeira. Tanto o ibu-en-wab quanto o
wabet eram estruturas móveis, facilmente montadas e desmontadas, feitas
de madeira. Em geral eram fixadas no lado oeste do Nilo, onde se
situavam a maioria das necrópoles nos tempos faraônicos. Parte do
trabalho era feito ao ar livre, dado aos odores provenientes dos corpos
em tratamento.
Processo demorado, durando cerca de 2 meses e meio, a mumificação
envolvia dois procedimentos básicos: 1°) evisceração, ou retirada de
órgãos - cérebro pelas narinas, vísceras por um corte no abdômen; estas
últimas eram em seguida depositadas em vasos, chamados pelos egiptólogos
de canópicos, que ficavam sob a proteção de divindades especiais. 2°)
desidratação, ou retirada da umidade do corpo - nesse sentido, cobriam o
cadáver com natrão, um composto de sódio, por pelo menos 40 dias, ao
final dos quais só restavam pele, ossos e carnes endurecidas. Seguia-se,
durando cerca de 2 semanas, o enfaixamento com bandagens de linho,
entre as quais depositavam-se jóias e amuletos de proteção.
Interessante lembrar que a palavra múmia não é egípcia. Vem do persa ou
árabe mummiah, que significa betume - substância a que se atribuíam
poderes curativos. A aparência escura de certos corpos embalsamados do
tempo dos faraós sugestionou aos árabes a errônea concepção de que os
antigos egípcios usavam betume na preservação dos cadáveres. Sendo uma
substância bastante procurada devido ao seu emprego medicinal, as múmias
egípcias tornaram-se na Idade Média uma fonte segura de obtenção
daquele produto, movimentando um precioso comércio, envolvendo
Alexandria e o Cairo aos mercadores da Europa Ocidental que vinham em
busca das famosas especiarias. Isso provocou incansáveis saques aos
sepulcros dos tempos faraônicos. Corpos eram retirados das antigas
tumbas e divididos em pequenos pedaços, embalados para a venda como
medicamento. Seja como chá ou composta em pomada, acreditava-se na época
que múmia curava uma infinidade de doenças! Em egípcio antigo, a
palavra que designava um corpo preservado e envolvido em bandagens era
wi. A mumificação era chamada de wet - enfaixar - ou então senefer -
revigorar - termo esse que deixa claro um dos propósitos da prática.
Apesar dessa preocupação evidente com a preservação dos corpos, os
antigos egípcios, ao contrário do que comumente se pensa, jamais foram
obcecados pela idéia da morte e do além-túmulo. Amavam a vida terrena
acima de tudo, e achavam que nada valia em troca dela. A morte era vista
como uma passagem para a outra vida, onde se levaria uma existência
semelhante à da terra. Era para esta nova existência que deveria ser
feita uma cuidadosa preparação - incluindo a mumificação - o que
permitiria à alma um desfrute pleno e eterno da felicidade que lhe
aguardava no além.
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